CASA DOS CASTRO GOMES (Rª de S. Francisco)

No prédio ao lado do Grémio Literário “habitava Maria Eduarda, a maior criação romanesca feminina do século XIX português.”. No mesmo prédio, morava também o maestro Cruges.

in https://lisboadeantigamente.blogspot.com/2015/11/gremio-literario.html, 25-11-2015
(consult. a 30-04-2023, com supressões)


A casa de Maria Eduarda ficava na rua de São Francisco e era propriedade da mãe de Cruges. Maria vivia no primeiro andar, alugado a ela e a Castro Gomes.

É a partir dos espaços onde Maria Eduarda esteve, nomeadamente nesta casa, que Carlos vai tentando adivinhar a personalidade que a caracteriza.

Na primeira vez que Carlos vai à casa de Maria, quando da visita a Rosa, este apreende neste espaço uma atmosfera de intimidade, sensualidade e luxo.

Na segunda vez, Carlos considera a casa acolhedora, que por sua vez lhe transmite várias sensações: o bom gosto e o requinte de algumas peças, onde se destacam o Manual de Interpretação de Sonhos e uma caixa de pó de arroz ornamentada como se fosse uma coccote. Estes são um presságio da dualidade de Maria, já que se ligam a Afrodite (deusa do amor e elemento perverso do ser feminino) e revelam o meio cultural distante do de Carlos, evidência a que este é sensível.

"Na manhã seguinte, Carlos, que se erguera cedo, veio a pé do Ramalhete até à rua de S. Francisco, a casa de Madame Gomes. No patamar, onde morria em penumbra a luz distante da clarabóia, uma velha de lenço na cabeça, encolhida num chalezinho preto, esperava, sentada melancolicamente ao canto do banco de palhinha. A porta aberta mostrava uma parede feia de corredor, forrada de papel amarelo. Dentro um relógio ronceiro estava batendo dez horas.
- A senhora já tocou? perguntou Carlos, erguendo o chapéu."

"- Eu parece-me que estou muito contente, meu senhor... O Sr. Cruges também mora cá por cima...
- Bem sei, bem sei...
- Tenha V. Exc.ª a paciência de esperar um instantinho que eu vou dar parte à Sr.ª D. Maria Eduarda...
Maria Eduarda! Era a primeira vez que Carlos ouvia o nome dela; e pareceu-lhe perfeito, condizendo bem com a sua beleza serena. Maria Eduarda, Carlos Eduardo... Havia uma similitude nos seus nomes. Quem sabe se não pressagiava a concordância dos seus destinos!"

"Mas a cadelinha de repente namorara-se dele, deitada já na cadeira. de patas ao ar, descomposta, abandonando o ventrezinho às suas carícias. Carlos ia coçá-la e amimá-la, quando um passo leve pisou a esteira. Voltou-se, viu Maria Eduarda diante de si.
Foi como uma inesperada aparição - e vergou profundamente os ombros, menos a saudá-la, que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia abrasar-lhe o rosto. Ela, com um vestido simples e justo de sarja preta, um colarinho direito de homem, um botão de rosa e duas folhas verdes no peito, alta e branca, sentou-se logo junto da mesa oval, acabando de desdobrar um pequeno lenço de renda. Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos pousou-se embaraçadamente à borda do sofá de reps. E depois dum instante de silêncio, que lhe pareceu profundo, quase solene, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, dum tom de ouro que acariciava.
Através do seu enleio, Carlos percebia vagamente que ela lhe agradecia os cuidados que ele tivera com Rosa: e, de cada vez que o seu olhar se demorava nela um instante mais, descobria logo um encanto novo e outra forma da sua perfeição. Os cabelos não eram louros, como julgara de longe à claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro, espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa. Na grande luz escura dos seus olhos havia ao mesmo tempo alguma coisa de muito grave e de muito doce. Por um jeito familiar cruzava ás vezes, ao falar, as mãos sobre os joelhos. E através da manga justa de sarja, terminando num punho branco, ele sentia a beleza, a brancura, o macio, quase o calor dos seus braços.
Ela calara-se. Carlos, ao levantar a voz, sentiu outra vez o sangue abrasar-lhe o rosto."
Os Maias, cap. XI


Ele nada sabia... O que a Monforte ali assegurava, ele não o podia destruir... Essa senhora da Rua de S. Francisco era talvez, na verdade, sua neta... Não sabia mais...“ - Os Maias (cap. XVII)

Outra conclusão a que podemos chegar da relação de Maria Eduarda com os espaços é que estes simbolizam os altos e baixos da sua vida. Tudo isto é revelado quando Maria conta todo o seu passado a Carlos.

Os vários espaços onde Maria Eduarda viveu durante a sua vida estão relacionados com os altos e baixos da sua vida.

Após ter saído de Portugal com a sua mãe, Maria Monforte, foi para um convento onde adquiriu hábitos saudáveis. Este espaço também está relacionado com a pureza, religião e paz, que, no entanto, muda quando vai viver com a sua mãe no Parque Monceaux. Esta era uma casa de jogo, mas sofisticada e luxuosa. Agora, em vez de hábitos saudáveis exemplares que verificava e praticava no convento, de manhã deparava-se com paletós de homens por cima dos sofás, ou seja, algo completamente diferente.

Depois foram viver para o terceiro andar de Chaussée-d’Antin, outra casa de jogos, inferior à anterior. É aqui que conhecem Mc Gren, por que Maria Eduarda se apaixona, vai viver momentos de felicidade com ele num Cottage e tem uma filha.

Infelizmente, este morreu na guerra, e como nunca se casaram, Maria Eduarda, sua filha e sua mãe ficam na miséria numa casa no bairro de Soho em Londres. Viveram assim até encontrarem Castro Gomes, com quem voltaram para Portugal.

“Enfim a mamã metera-a num convento ao pé de Tours.”

“A casa da mamã, no Parque Monceaux, era na realidade uma casa de jogo - mas recoberta de um luxo sério e fino. (…) A pobre mamã caíra sob o jugo de um Mr. de Trevernnes, homem perigoso pela sua sedução pessoal e por uma desoladora falta de honra e de senso. A casa descaiu rapidamente numa boémia mal dourada e ruidosa. Quando ela madrugava, com os seus hábitos saudáveis do convento, encontrava paletós de homens por cima dos sofás: no mármore das consoles restavam pontas de charuto, entre nódoas de champanhe; e nalgum quarto mais retirado ainda tinha o dinheiro de um bacará talhado à claridade do sol”.

“Mudaram então para um terceiro andar da Chaussée-d’Antin. Aí começou a aparecer uma gente desconhecida e suspeita”.

“Mas quem veio foi Mac Gren.

E partira com ele, sem precipitação, como sua esposa, levando todas as suas malas”.

“Alugaram então, no bairro pobre de Soho, três quartos mal mobilados. Era o lodging de Londres em toda a sua suja, solitária tristeza; uma criadita única, enfarruscada como um trapo; alguns carvões húmidos fumegando mal na chaminé; e para jantar um pouco de carneiro frio e cerveja da esquina”.

Os Maias, cap. XV


Maria Eduarda Maia é uma das personagens principais da obra. A sua personalidade “vai sendo desenhada pela sua descrição física e pela descrição do ambiente em que se encontra.

Após a revelação de que “não é, afinal, casada com Castro Gomes”, vai-se descobrindo mais sobre o seu passado. Afastada da família pela mãe, é uma “vítima trágica” do destino e da fatalidade ao praticar o incesto inconscientemente.

Carlos Reis, Educação Literária – Leituras Orientadas, Os MaiasEça de Queirós, Porto, Porto Editora, p. 89

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